De fato, lembramos de muito pouco de nossas vidas. Na verdade, se perguntássemos para as pessoas o que elas fizeram hora a hora do seu dia, há três dias, seriam muito raras as que conseguiriam responder.
Porém, isso não acontece por esquecermos. Pessoas hipnotizadas, por exemplo, são capazes de acessar memórias que há muito estavam enterradas e que parecia que jamais poderiam ser lembradas.
Os esquecimentos normais
Não lembrar de todas as coisas que se passaram há três dias, por si só, não é algo que cause qualquer transtorno, porque esse mecanismo de “esquecimento” é um processo natural do nosso cérebro, que guarda num “arquivo-morto” os acontecimentos mais irrelevantes.
Da mesma forma que nosso aparato atencional nos ajuda a não prestarmos atenção em todos os estímulos que chegam até nós para que consigamos ter foco (sem sentir o peso do ar sobre nós, o movimento dos nossos órgãos internos ou ouvir todo e qualquer ruído ao nosso redor), nossa memória também passa por um filtro.
Qual a diferença entre memórias esquecidas e recalcadas?
O termo “recalque”, conhecido através de Freud, o pai da Psicanálise, ficou muito conhecido, porém, continua pouco entendido no conhecimento comum.
Algo esquecido somente se refere a essas trivialidades e memórias com pouca ou nenhuma relevância para o restante dos objetivos ou questões da vida de alguém. Recalque é outra coisa.
São chamadas memórias recalcadas as experiências infantis mais relevantes da vida de um sujeito, mas que, por seu conteúdo ser traumático ou inaceitável à consciência, são ativamente empurradas “para baixo”, para o ponto mais fundo do inconsciente e que são ativamente vigiadas pelas outras partes do psiquismo, para que elas de forma alguma sejam lembradas.
Os acontecimentos recalcados estão na base da formação do caráter de qualquer pessoa, mas a força com as quais esses querem retornar à consciência e a quantidade de empenho que as outras instâncias do psiquismo têm que fazer para mantê-los inconscientes, pode levar a diversos prejuízos na vida de qualquer pessoa.
Dificuldades crescentes de memória e sua relação com o recalque
Imagine que nossa mente é formada por uma grande teia de “palavras”. Significantes que representam algo do mundo real e que, juntos, formam um sentido, moldam a forma como entendemos, experimentamos e sentimos a nossa realidade.
Esses significantes tornam possível o processo de memorização, pois simbolizam o que existe no nosso mundo externo, para que sejamos capazes de nos lembrar. Sem essa simbolização, para nos lembrarmos das coisas, teríamos que carrega-las literalmente conosco, pois não seríamos capazes de codificá-las dentro de nós.
Acontece que as memórias recalcadas, por serem estruturantes e muito importantes, e quererem o tempo todo serem lembradas, para burlarem nossas defesas que impedem sua emergência à consciência, ligam-se a outros significantes do que foram lançados no inconsciente, como um disfarce.
Proteção redobrada
Quando nossas defesas percebem essa tentativa, as outras memórias triviais que poderiam ser alcançadas e relembradas, são também duramente bloqueadas, não por serem nocivas, mas por, de alguma forma se ligarem ao conteúdo recalcado.
Então, numa tentativa ainda maior de disfarce, o conteúdo recalcado se liga, através dessa memória trivial banida da consciência por fazer referência à memória repudiada, a uma outra memória qualquer, que por sua vez também é banida.
Dependendo de como está a força e a capacidade do ego do sujeito para lidar com essas investidas do inconsciente recalcado, essa memória reprimida pode aumentar cada vez mais sua “teia” e, dessa forma, numa tentativa extrema de defesa, qualquer lembrança pode ser fortemente inibida, na tentativa de não permitir qualquer passagem do recalcado à consciência “sem querer”.
Nesse estado, a pessoa pode notar perdas constantes de memória, aparente falta de atenção, perda de habilidades que já eram totalmente conquistadas, além de frequentes trocas de palavras ou esquecimentos de palavras aleatórias, ou ainda, dificuldade severa em se expressar através de palavras.
Problemas de saúde e sua relação com o recalque
Outra consequência da dificuldade em lidar com o inconsciente recalcado é a somatização. O aparecimento de sintomas corporais, com ou sem causas descobertas por exames médicos, mas que são recorrentes e que surgiram como que “do nada” em uma determinada fase da vida da pessoa.
Isso acontece porque, como uma outra defesa para que o recalcado não apareça na consciência, acontece como que um “acordo” interior para que essa memória seja lembrada, sem ser lembrada simbolicamente – através de significantes –, sem que ela se torne compreensível à consciência.
O sintoma físico
Nesse arranjo, o afeto ligado à memória se liga a uma parte do corpo, trazendo à tona o que foi sentido quando o fato original recalcado aconteceu, mas sem dar qualquer pista desse significado.
Dessa forma, o sujeito se protege numa espécie de casamento entre o acesso à consciência e a manutenção do recalque: ao mesmo tempo que a memória permanece recalcada, uma parte dela pode ser “lembrada”, sentida, repetida na consciência – apaziguando, assim, o tormento das tentativas frequentes de entrada na consciência.
Por esse motivo é tão difícil “se curar” de um sintoma. Pois, o sintoma não é um problema. Ele é a solução (dolorosa e que pode trazer diversos prejuízos funcionais para a pessoa) de uma grande ameaça psíquica que o ego do sujeito não estava conseguindo suportar.
O trabalho da Psicanálise
A psicanálise se baseia na cura através da fala. Fala sem regras, livre. Mesmo que aparentemente sem sentido.
Em seus primórdios, Freud trabalhou através da hipnose, porém, logo a abandonou, pois via que os resultados não eram duradouros, além do fato de que nem todos podiam ser hipnotizados com sucesso.
Logo, ele percebeu que o motivo pelo qual os benefícios alcançados, quase que magicamente, pela hipnose não se mantinham efetivos se dava pelo fato de, que quando hipnotizado, o sujeito “desarmava” algum mecanismo que, quando fora do estado hipnótico, voltava a funcionar, escondendo novamente a memória que já havia sido lembrada, ou escondendo novamente o seu sentido.
Dessa forma, o método psicanalítico mudou para a Livre Associação, ou seja, falar tudo o que vier à mente, mesmo que seja bobo ou sem sentido.
Como a terapia de base psicanalítica pode ajudar
Dessa forma, permitindo a fala aberta e mesmo desconexa, sem julgamentos, direcionamentos arbitrários ou correções, o mecanismo de defesa do psiquismo fica mais “distraído” e algumas daquelas memórias triviais que estavam bloqueadas por se ligarem direta ou indiretamente a um conteúdo recalcado podem começar a retornar para a consciência.
E, diferente de se esse acontecimento fosse num estado hipnótico, estando o sujeito alerta no momento em que a lembrança é recordada, esta fica simbolizada novamente na consciência e é elaborada por ela.
Também diferente do processo hipnótico, as lembranças obtidas pela associação livre acontecem gradativamente, na medida em que o ego vai reestabelecendo sua força, elaborando outras memórias e conseguindo suportar o que está emergindo do inconsciente.
O resultado da psicoterapia
O acesso a essas memórias faz com que não seja mais necessário o recurso de defesa utilizado na perda de memórias e também deixa o sintoma obsoleto, fazendo com que este desapareça naturalmente.
Pode ser que a pessoa ganhe a capacidade de citar detalhadamente a causa de alguns sintomas e pode ser que outros simplesmente sumam e a pessoa perceba isso colateralmente à terapia.
Seja da forma que for, a terapia de base psicanalítica, possibilita a libertação do sujeito para viver o presente e construir o futuro e não somente se defender de si mesmo e reagir ao seu passado.
Referências
- FREUD, A. O ego e os mecanismos de defesa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
- FREUD, S.Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. ESB, vol.VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990(1905).
- FREUD, S. O Eu e o Isso. ESB, Vol.XIX . Rio de Janeiro, Imago Ed., 1990(1923)
- FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos.ESB, vol.IV. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990(1900)
- FREUD, S.Fragmento da Análise de um Caso de Histeria. ESB, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990(1905[1901])